O atelier do artista e a institucionalização do privado:

Três casos – Brancusi, Schwitters, Bruscky

Guy Amado

Este artigo visa propor uma reflexão sobre iniciativas que, a título de difusão da obra como da recuperação ou conservação de ateliês de artistas, acabam por institucionalizar tais espaços, não raro sobrepondo-se ou mesmo entrando em conflito direto com as intenções originais dos artistas. Os casos a serem analisados são os da reconstituição do estúdio de Constantin Brancusi e da Merzbau de Kurt Schwitters, bem como da transposição do atelier de Paulo Bruscky para o espaço expositivo, no âmbito da 24ª Bienal Internacional de São Paulo.

Inicialmente referido como marca da modernidade artística, no século XIX, em sua conjugação gradualmente híbrida de espaço a um só tempo privado e público[1], o estúdio ou atelier de artista teve seu estatuto alterado, ou alternado, ao longo do último século e meio. Passa a ser tanto o lugar da prática de criação como também o espaço de afirmação social do artista, movimentação que colabora no estabelecimento de certa mítica em torno destes locais. Lugares emblemáticos da atividade criadora, de “estados da consciência alterados” e portanto dotados de uma inerente qualidade de certo mistério e solenidade.

Mas o ponto central que aqui se pretende discutir é ainda mais específico: o comentário acerca de um curioso processo de ‘institucionalização’ por que alguns estúdios ou ateliês de artistas passaram, em diferentes contextos, desde a modernidade. O processo envolvendo a recriação do studio de Brancusi é exemplar desse fenômeno. O evento envolvendo as circunstâncias de preservação, ou antes da reconstituição do atelier de Constantin Brancusi pelo governo da França – atualmente em um prédio anexado ao Centro Georges Pompidou, em Paris -, em princípio seguindo o desejo do artista, é paradigmático do que se busca aqui discutir, e é dele que partiremos. Iremos então partir deste exemplo para a ele acrescer dois outros casos, o de Kurt Schwitters e sua Merzbau e outro envolvendo o artista brasileiro Paulo Bruscky. A ideia é tentar apontar similitudes no que tange às circunstâncias problemáticas em torno dos processos de institucionalização que os espaços de trabalho – e de vida – desses três artistas enfrentaram.

O caso Brancusi – Centro Georges Pompidou

Quase em frente ao Centro Georges Pompidou, em Paris, num pequeno prédio, situa-se o Atelier Brancusi. No ano de 1956, cansado e já com a saúde abalada, o escultor legou todo o conteúdo de seu atelier no 15e arrondissement ao estado francês, sob a condição de que fosse conservado exatamente como se encontrava quando de sua morte – o que ocorreu no ano seguinte. Após duas mal-sucedidas tentativas de reconstrução anteriores, uma no Palais de Tokyo e outra no próprio Musée National d’art Moderne, o projecto enfim ganhou forma em definitivo em 1997, pelas mãos do arquiteto Renzo Piano, que reproduziu o estúdio de Brancusi tão fielmente quanto possível a estes termos, instalado como um anexo do Pompidou. O layout do atelier foi reconstituído minuciosamente, incorporando esculturas, fotografias, manuais, discos e ferramentas de modo a satisfazer o desejo do artista em ter sua obra apresentada em sua totalidade. Mais precisamente, abarcando 137 esculturas, 87 pedestais, 41 desenhos, duas pinturas e inúmeras fotografias e placas de vidro do acervo pessoal do artista, além de uma vasta gama de livros e peças de mobília.

L’Atelier Brancusi

Pois bem. O atual complexo “l’Atelier Brancusi” compreende um conjunto de quatro salas; duas das quais estão repletas das proverbiais esculturas fluidas em bronze e mármore altamente polido, formas de colunas e pássaros abstratos, marca registrada do artista, bustos estilizados e objectos como ‘em suspensão’. Brancusi tinha notória obsessão com as relações espaciais entre suas esculturas no studio, chegando ao ponto de substituir cada peça vendida por uma cópia em gesso, no que as quatro salas interconectadas da atual re-montagem atendem de modo correto a suas disposições. Contudo, os espaços estão iluminados por enormes janelas de vidro, quase à maneira de um aquário, o que de saída confere uma talvez incompatível sensação de esterilidade e distanciamento àquele espaço. Talvez as salas mais satisfatórias, do ponto de vista das premissas em questão, sejam as que remetem originalmente às alas privativas do artista, onde suas ferramentas são hoje exibidas numa parede quase como obras de arte elas próprias; o que por outro lado reforça uma desnecessária apreensão estereotipada da ideia de artista e de seu metiér.

   No geral, a impressão que se tem é a de que a empreitada terminou por incorrer numa caricaturização de toda a vitalidade original daquele espaço. Decerto houve enorme empenho logístico e rigor detalhista na tentativa de se reproduzir e/ou transpor tão fielmente quanto possível o conteúdo original do atelier para esta nova configuração; mas o que se percebe é que nem todos os fatores envolvidos numa operação desta natureza são passíveis de serem transpostos ou resolvidos no plano técnico. Em todos os ambientes do que se pretende ser a recriação fidedigna do estúdio do grande escultor, a tônica dominante é de uma assepsia e limpeza extremas, gerando uma leitura absolutamente incompatível com o que se seria suposto esperar de um local carregado da intensidade de um artista que ali viveu, produziu e instalou uma tradição de convívio e sociabilidade por mais de três décadas. Para além do virtuosismo logístico, o que ali se experiencia, apesar do esforço envolvido, é a prevalência das demandas do espetacular-cenográfico sobre a presença daquilo que não se pode afinal reproduzir deliberadamente; esse espaço da falta é a impossibilidade de captação da aura, do  genius loci.

 O caso Schwitters-Merzbau/Pinacoteca SP

Em outubro de 2007, a Pinacoteca de São Paulo inaugurava uma exposição retrospectiva de Kurt Schwitters. Para além de um consistente [e pouco visto, ao menos no Brasil] conjunto de obras apresentadas cronologicamente, o grande atrativo da mostra era uma réplica da Merzbau, supostamente tal como montada em 1933, a partir de fotos[2]. O projecto seguia portanto a configuração da primeira versão engendrada pelo artista, ainda dos tempos de Hannover, de onde Schwitters irá partir às pressas por conta da guerra rumo a Oslo, em 1937, e de lá para Londres, em 1940. Esta “primeira Merzbau” seria destruída em bombardeio no ano de 1943[3]. Permitamo-nos então recontextualizar brevemente as origens e a aventura da Merzbau na trajetória do artista germânico.

A Merzbau, ou “construção Merz” é uma obra que o artista considera como síntese de seu projeto de vida, uma espécie de “autobiografia construída”. Merz era um termo utilizado por Schwitters em registo ambivalente: ora como um conceito, ora como uma persona, muitas vezes de ambos os modos. O significado, como a própria obra, alternava-se e se transmutava de acordo com suas próprias demandas. O processo de elaboração da Merzbau é fundado no contínuo acúmulo de objetos e imagens formando esculturas, que geram colunas, que ganham gradualmente uma conformação orgânica “totalizante”. Cabe notar que a ação de recolha do material, que em grande parte Schwitters apanhava diretamente das ruas, embutia um singular acto de “purificação”, análogo ou simulacro de um ritual de sacralização. Como se esses materiais descartados [“o lixo da civilização”], ao serem retirados do ambiente “profano” do mundo, passassem por um equivalente de consagração religiosa. O que propicia a conhecida relação que o artista estabelece entre a Merzbau e as catedrais góticas – ele chega inicialmente a utilizar a expressão “cathedral of erotic misery” referindo-se aos componentes estruturais do que viria a ser a Merzbau -, uma vez que a idéia de catedral pressupõe a construção de um mundo à parte do mundo dito profano. Poderia-se então compreendê-la como uma espécie de templo, mas um templo “sujo”, marcado pelo excesso de acúmulo e extrema organicidade, tanto material como estrutural. Características que confluem para uma compreensão da merzbau como construção autobiográfica, carregada de fragmentos e registros da vida pessoal do artista alemão. Schwitters estava engajado em tentar fazer a arte chegar à superfície do real; e as merzbau seriam a personificação deste anseio. A plataforma da Merzbau anuncia-se ainda, nos termos do artista, como eminentemente interminável, confundindo-se radicalmente com a própria vida.

a Merzbau na Pinacoteca SP [vistas variadas]

Mas voltemos ao ponto que ora interessa. A réplica da Merzbau – cujas possibilidades de aferição de registo fidedigno em relação ao original são ainda mais remotas que no caso de Brancusi, com quem aliás o artista estabelece inusitada referência[4] – que se apresenta na Pinacoteca de SP é, antes de tudo, imaculada. Um grande conjunto cenográfico de uma alvura reluzente; seus nichos cheiram a novo, e para se adentrar o espaço a fim de experimentá-lo há que se sacar os calçados e calçar sapatilhas especiais. O pavimento é revestido por uma película sintética branca que reforça a sensação de se estar num espaço de pureza, em que a condição de assepsia se impõe como fundamental para a apreensão – fruição estética? – de seu conteúdo. O que, se quisermos, por um lado vai de encontro à orientação semi-religiosa que Schwitters imprimia em sua relação com a experiência da Merzbau como detentora de certa qualidade do sagrado; sentimento este construído a partir de critérios absolutamente idiossincráticos, como se observa nos aspectos já comentados acima. Entretanto, inversamente, tal configuração parece impôr-se como antitética a algumas premissas desta apaixonada empreitada de uma vida, imprimindo certo amortecimento, ou uma pré-sensibilização dos sentidos problemática no que tange à observação das muitas camadas de sentido [e de matéria] que a Merzbau oferece. A experiência gera um duplo incômodo: primeiro pelo fato de se saber tratar de uma réplica da obra, por princípio muito limitada. Depois, e ainda mais importante, pelo fato de a obra já não mais existir e de carregar na sua pulsão geradora a condição de uma eterna incompletude, condição essa que é totalmente desconsiderada naquele contexto.

Iniciativas como essa, apesar de em geral certamente fundadas em propósitos edificantes, apoiadas na argumentação – de resto lícita – da conservação, preservação e difusão de patrimônio cultural e artístico, por vezes desconsideram as especificidades e fatores subjacentes à natureza original dos objetos que elegem, terminando por comprometê-los fortemente, quando não se descaracteriza o projeto por completo. É pena, já que talvez o viés que mais interesse numa aproximação crítica da Merzbau é o desta se apresentar como um exercício de constante atualização imaginativa. Como dá a entender Ernst Nündel, especialista na obra de Schwitters, ao resumir a potência da dimensão especulativa ativada pela Merzbau e sua promessa de infinitude:

The Merzbau, destroyed in 1943, continues growing, in the memory of those who saw it […] in the speculations of art historians. To each his/her own (concept of the) Merzbau. In this state it approaches the idea of Merz, the idea of continuous recasting, of an artistic process without bounds, without beginning and without end.[5]

O caso Paulo Bruscky / Bienal SP

De outra ordem é a problematização em torno do terceiro e último caso a ser aqui analisado, no curso desta tentativa de se apresentar uma leitura crítica de aspectos de algo como uma institucionalização do privado no meio artístico: o do artista brasileiro Paulo Bruscky, e a análise das peculiares instâncias de transposição de seu apartamento-atelier para o espaço expositivo da 26ª Bienal Internacional de São Paulo [2004].

Pernambucano do Recife, nordeste do Brasil, Bruscky [n. 1949] é conhecido por sua atitude experimental e postura vanguardista e contestadora em seu contexto, ao longo de sua carreira, características que sua diversificada produção sempre fez transparecer. Artista e performer impossível de restringir a uma determinada categoria ou modalidade estilística, era também poeta e inventor. É um dos pioneiros na prática de mail-art, ou arte postal no Brasil, com intensa produção neste formato. Editou ainda alguns livros de artistas e mantém em seu atelier um vasto arquivo bibliográfico e documentos relativos à arte, dentre os quais uma densa e preciosa correspondência com integrantes do grupo Gutai e com diversos membros do Fluxus.

De espírito irrequieto, o artista empenhou-se em dar voz a questões políticas por meio de seu trabalho, especialmente no período dos anos 1970, em que imperava a ditadura militar e a repressão oficial era parte da experiência cotidiana. Fazia-o por meio de estratégias e procedimentos artísticos no mais das vezes extremamente simples e pouco ortodoxos, mas de grande potência reflexiva: ações efêmeras no tecido social da urbe, ou pequenas intervenções em escala urbana[6], experiências com arte postal, áudio-arte e videoarte e xerografia, áreas ou procedimentos nos quais é apontado como um pioneiro no país. É reconhecido como um dos mais importantes renovadores da cena artística contemporânea do Recife, embora, de modo geral, tenha permanecido um tanto à margem da historiografia oficial da arte brasileira até a década de 1990[7].

A convite do curador-geral do evento em questão – que tinha como mote temático daquela edição o bordão “Território livre” -, o alemão Alfons Hug, o artista pernambucano teve seu espaço de criação deslocado temporariamente “na íntegra” para o pavilhão onde transcorria a Bienal de São Paulo. Numa operação paciente e meticulosa, onde se utilizaram mais de 300 caixas para transportar os 5 mil livros do artista, uma grande quantidade de obras do próprio Bruscky e de outros artistas, além de toda sorte de objetos e até alguns móveis do ateliê-apartamento do artista em Recife, a transposição, ou antes a réplica foi levada a cabo com sucesso. Em sua totalidade, o conjunto apresenta-se como um verdadeiro arquivo, vivo e multifacetado. Foi remontado como uma instalação por toda a duração do evento (cerca de 3 meses), e disposto no segundo pavimento do pavilhão da Bienal, no prestigioso setor das Salas Especiais – estatuto consentido, naquela edição, à produção de apenas oito artistas. Cada centímetro do atêlie de Bruscky foi refeito. Lá estavam os três dormitórios, duas casas de banho e cozinha, cada ambiente repleto de memorabilia e objetos diversos – do artista e de conhecidos deste -, livros de arte e montes de papéis espalhados por toda parte. “Minha vida inteira está aqui. Até projetos que eu estava desenvolvendo estão em umas pranchetas que ficaram em um dos quartos”, disse o artista à Reuters na ocasião.

A conformação geral deste atelier-arquivo era estruturada como um ‘caos ordenado’, em que sobressaíam a absurda quantidade de informação visual produzida pelo acúmulo de objetos e documentos, e a novamente incontornável ambientação cenográfica, uma vez que, apesar do rigor no conteúdo, foi preciso construir as paredes (falsas) que simulam ser as do apartamento real. Aspecto que potencializa a incômoda – e certamente indesejável, no caso – sensação de estar numa cidade cenográfica, à maneira das que abundam em novelas brasileiras. Mas o que realmente chama a atenção é o contraste gerado pela minúcia em reproduzir de modo preciso o ambiente de trabalho de um artista sabidamente intenso e despojado e o anseio curatorial em enfatizar o que chamarei algo intuitivamente de efeito de “suspensão do tempo”; a criação de uma atmosfera evocativa da presença do artista como se ele ali estivesse estado há poucos minutos, ou que ele pudesse ali se materializar a qualquer momento. A mesa semi-posta, os papéis cuidadosamente esparramados pelo chão, os objetos de uso pessoal como que à espera de serem guardados: uma aura de “displicência calculada” transbordava daquela ambientação. E apesar de relativo sucesso na tradução da atmosfera “caseira” na solução expositiva adotada, nada do que ali se via apresentava-se ao toque ou ao contato direto do público: todos os elementos eram resguardados por faixas ou cintas de segurança. Um sentido de fluxo, tão característico da atividade de Bruscky, está ausente.

Se tais efeitos terão sido ou não efetivamente pensados como artifícios indutores da percepção, é difícil afirmar: todavia, o fato é que claramente enfraqueciam a experiência de imersão no universo de criação do artista – neste “acervo vasto de quase tudo”, nas belas palavras de Moacir dos Anjos[8] – em detrimento de favorecer demandas da ordem de um voyeurismo improvável. É preciso reconhecer que algum grau de fetichismo é um fator inerente a uma proposta desse tipo; sobretudo quando se trata de protagonistas em que a práxis artística e a dimensão da vida fundem-se de modo tão contundente, e se reforçam expectativas no sentido de acessar o espaço privado, e “mágico”, do artista. Contudo, poderia-se talvez ter minimizado a dinâmica de, digamos, anódino exotismo em que foi imersa a obra áspera e despojada, mas extremamente consistente e dotada de alto teor crítico, de Paulo Bruscky.

No caso específico do atelier de Bruscky, deve-se assinalar que, diferentemente do que ocorre nos exemplos anteriormente relatados, o que se passava aqui não estava a serviço de disposições objetivamente reprodutivas ou relacionadas à conservação da obra do artista em tempo passado, de cunho evocativo ou celebratório da “mítica do atelier”. O artista – e guardadas as devidas distâncias entre o corpo de sua obra e a estatura canônica dos outros dois nomes já comentados, aspecto que ademais não possui relevância para a abordagem que ora se propõe – afinal, estava, como está, vivo e atuante. E de resto, o processo de “institucionalização” de seu espaço de trabalho foi de ordem temporária, no contexto pontual de sua incorporação a uma determinada proposta curatorial. Tais aspectos indicam uma singularidade que ora aproxima, ora distancia o caso de Bruscky de seus dois colegas de métier anteriormente comentados.

CONCLUSÃO

O que se pode afirmar ao olhar em movimento panorâmico sobre as três situações relatadas é que estes casos[9], embora apresentem particularidades contextuais, tendem a convergir no que se refere às esferas de institucionalização a que foram submetidas. Ou ao menos em alguns pontos. A remontagem, ou recriação dos espaços de trabalho de Brancusi, Schwitters e Bruscky, que eram também espaços eminentemente domésticos, ainda que movidas por uma pulsão em princípio defensável do ponto de vista das práticas de difusão e conservação do patrimônio cultural, incorrem em deslizes, como se tentou sustentar. Nos exemplos citados houve por um lado o patrocínio e a ingerência do Estado (francês), no caso da reconstrução do atelier de Brancusi, como da iniciativa privada (em parceria com equipamentos culturais públicos), nos projetos sobre as obras de Schwitters e de Bruscky.

A instrumentalização operada nas formas adotadas para gerar a (nova) visibilidade pública destas produções encerra aspectos problemáticos sob um viés, em última análise, ético. A essa altura só se pode especular sobre os juízos que o mestre romeno e o artista alemão emitiriam a respeito de tais operações, mas é lícito supor que as referidas empreitadas realizadas em sua homenagem, nos termos que foram executadas, apresentem aspectos antitéticos em relação a seu espectro de valores e convicções pessoais e estéticos. Ambos partilhavam, por exemplo – e em graus diversos – da importância da dimensão espiritual em suas práticas; fator que entretanto terá sido em grande medida obliterado ou transfigurado na execução das réplicas, ao sabor da versão do corpus de suas obras que se decidiu [re]elaborar.

Já Paulo Bruscky estaria em outra posição, em vários sentidos: um cético esclarecido, de vocação transgressora, provocador inteligente e comprometido com uma agenda libertária – que todavia não prescinde da sutileza e mesmo da delicadeza em algumas de suas propostas artísticas –, teve a oportunidade de poder autorizar e acompanhar as instâncias de desenvolvimento da breve musealização de seu atelier-arquivo-espaço-de-convívio. Sua aquiescência, ou ao menos aparente indiferença acerca do que foi aqui compreendido como um exercício fetichista-estereotipado em torno do clichê da “aura do artista” sugere que talvez o artista em si não tenha se incomodado, ou que ao fim e ao cabo lhe terá sido uma experiência positiva, pesados os fatores em jogo. Posição que sem dúvida deve ser respeitada[10]; mas que por outro lado não impede a emissão de juízo externo, mesmo que à luz de seus próprios preceitos.

Por outro lado, claro está que articular a contento e harmoniosamente todas as idiossincrasias inerentes a um processo desta natureza e escala pode ser tarefa ingrata, quando não inviável. Resta a esperança de que futuras iniciativas deste perfil, voltadas para a conservação ou exposição privilegiada de patrimônio artístico diferenciado, mostrem-se tão sensíveis às demandas teatralizadas ou espetacularizadas que por vezes comprometem o sentido histórico em jogo quanto às pulsões originais de seu autor e elementos estruturantes da produção em questão.

 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BIENAL DE SÃO PAULO, 26ª. Catálogo de artistas convidados. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2004.

BUCHLOCH, Benjamin H. D., “1926,” in Hal Foster et al., Art Since 1900: Modernism. Antimodernism, Postmodernism. New York: Thames & Hudson, 2004, p. 211.

ANJOS, Moacir dos. “O ateliê como arquivo”. In: Catálogo 26a. Bienal Internacional de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2006.

DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

“EM OUTRA VIDA acho que fui arquivista”. Entrevista com Paulo Bruscky. Simone Michelin et al. Arte & Ensaios n. 19. Rio de Janeiro: UFRJ, 2009.

FREIRE, Cristina. Paulo Bruscky: arte, arquivo e utopia. Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 2006.

MATOS, Lidice. Arte é este comunicado agora – Paulo Bruscky e a crítica institucional. Concinnitas n. 118. Rio de Janeiro: UERJ, 2009.

NÜNDEL, Ernst. Kurt Schwitters in Selbstzeugnissen und Bilddokumenten, Reinbek bei Hamburg: 1981. Citado em WEBSTER, Gwendolen. Kurt Merz Schwitters: A Biographical Study. Cardiff: University of Wales Press, 1997.

RIEGL, Aloïs. “The modern cult of monuments: its character and origin”, tradução de K. W. Forster e D. Ghirardo, in Oppositions 25. Cambridge: The MIT Press, 1982.


[1] Privado porque local da práxis artística, tradicionalmente solitária; e público porque, sobretudo a partir de meados do séc. XIX, o atelier torna-se também ponto de exibição e comercialização de obras e de subsequentes instâncias de integração social.

[2] Não seria a primeira ocasião em que irá se proceder a re-montagens da Merzbau. A mais conhecida deu-se no período de 1981-83, quando o influente curador Harald Szeemann encomendou ao designer cénico Peter Bissegger um projeto de reconstrução da ‘Merzbau proper’, no âmbito de sua famosa exposição Der Hang zum Gesamtkunstwerk:Europäische Utopian seit 1800 (ou “A Tendência da Obra de Arte Total: Utopias Européias desde 1800”). Ciente da virtual impossibilidade de reprodução fidedigna da empreitada, até pela condição de permanente incompletude em que a plataforma merzbau implica, Szeemann chamou a isso uma ‘tentativa de reconstrução’. Pelo que se pôde verificar das imagens consultadas, a configuração final desta re-montagem é extremamente similar, em sua aparente assepsia, ao caso da Pinacoteca de São Paulo que é aqui comentado. 

[3] Assinale-se que nestes dois outros locais onde viveu, o artista seguiu desenvolvendo novas versões de seu projeto pessoal.

[4] Num texto intitulado Ich und meine Ziele (“Eu e Minhas Metas”), de 1931, Schwitters comenta o processo embrionário da Merzbau, cujo epicentro seria uma coluna que cresce à maneira de uma árvore, tomando os cômodos do estúdio do artista, em Hannover, crescendo indefinidamente em direção ao céu do mesmo modo que a Coluna infinita de Brancusi.

[5] Ernst Nündel, Kurt Schwitters in Selbstzeugnissen und Bilddokumenten. Reinbek bei Hamburg, 1981. Citado em WEBSTER, Gwendolen. Kurt Merz Schwitters: A Biographical Study. Cardiff: University of Wales Press, 1997.

[6] Sua produção do período incorporava procedimentos regularmente descritos por analistas como “arte pública”, terminologia frente a qual apresento, no entanto, algumas ressalvas; nomeadamente por sua insuficiência ou inadequação semântica [afinal, em última instância “toda arte é pública”]. Por esse motivo, as ações ou proposições do artista realizadas em espaço urbano serão aqui referidas deste modo.

[7] A circulação da imagem pública de Bruscky viria a crescer exponencialmente justo a partir desta exposição na Bienal SP. Assim como a difusão de sua rica e singular produção em âmbito nacional, até então eclipsada por sua personalidade idiossincrática e por sua obra ter se desenvolvido em boa parte à sombra do que acontecia nos grandes centros do sudeste brasileiro [RJ-SP].

[8] DOS ANJOS, Moacir. “Paulo Bruscky”. In: 26a. Bienal Internacional de São Paulo. Catálogo de artistas convidados.  São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2006.

[9] A estes casos poder-se-ia apor talvez outros exemplos interessantes desta relação entre obra, estúdio e institucionalização de espaços de artistas: sem pensar muito, vem à mente Marcel Broodthaers e seu Musée d’Art Moderne, Département des Aigles, por exemplo, ou a aquisição-realocação do estúdio de Francis Bacon para uma galeria de arte de Dublin. Ou ainda o Museu imaginário de Malraux. Mas julguei não se apresentarem as características necessárias para efeito da abordagem que aqui se buscava, tendo portanto sido deixados de lado.

[10] A propósito de sua participação na Bienal, o artista afirmaria: “Ele [Alfons Hug, curador da 26a. Bienal] foi, entrou e ficou andando, para cima e para baixo. Ele voltou e propôs levar todo o ateliê […]. Foi o trabalho mais caro da Bienal”. “[…] Me interessava mostrar como é a vida de um artista. É como se fosse um ‘múltiplo’ do ateliê”. [em entrevista à revista Arte & Ensaios n. 19, 2009]

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