Rotas Alternativas – “ATITUDE” ou SINTOMA?

[publicado originalmente na Numero 1, 2003]

De algum tempo para cá, mais e mais se fala sobre uma emergência de “espaços alternativos” para a produção artística contemporânea. E por esse tipo de movimentação quase sempre subentende-se alternativas à esfera institucional – a museus, galerias e similares, de visibilidade e prestígio inegáveis mas que pressupõem mecanismos de acesso ou inserção nem sempre ao alcance da maioria. Pululam, então, diversos ‘novos espaços’ para exposições e/ou discussões em arte. Uma atividade que cresce em paralelo – e parece daí derivar – à proliferação de grupos e associações formados por artistas, na retomada de uma prática em alta até cerca de 15 anos atrás. Isso se desenvolve notadamente – mas não exclusivamente – no eixo Rio-São Paulo, ainda que os fatores que impulsionam essas iniciativas mantenham certas diferenças quanto à sua origem e estratégias de subsistência (o que poderia gerar uma outra discussão). Geralmente iniciativa desses agrupamentos de artistas, e surgidos a partir da conversão de residências e ateliês, esses espaços mantêm e alimentam diferentes graus de expectativa e pretensão em sua atividade. Há vários perfis de atuação possíveis sob a égide do alternativo ou independente, demarcados por anseios e pulsões diversos, o que frequentemente dificulta uma categorização precisa destas empreitadas – o que de resto parece irrelevante e incompatível com o espírito da coisa.

Para ficar em alguns entre tantos exemplos apenas nos dois principais pólos culturais do país, pode-se citar os ateliês Coringa e Piratininga, os já extintos “Casa da Xiclete” e Espaço Miolo, bem como o projeto temporário Galpão 15, a galeria 10,20 x 3,60 e, em outra medida, os projetos Linha Imaginária e Atelier Aberto, em São Paulo (o último locado em Campinas); o Rés-do-Chão, de Edson Barrus, e os mais estruturados Agora e Capacete, no Rio de Janeiro. Todos espaços adaptados para abrigar mostras ou eventos à margem do circuito dito oficial, improvisados ou não e freqüentemente de duração fugaz – ou simplesmente para funcionar como “base/atelier” para coletivos de artistas. Algumas dessas iniciativas acabam por ganhar mais estatura e expandem seu leque de possibilidades, passando a promover debates e seminários, convidando artistas e pensadores internacionais, e até mesmo – em alguns casos – conseguindo investir em publicações próprias.

Pode-se então indagar sobre que fatores estariam por trás do súbito ímpeto por parte da classe artística em buscar alternativas autônomas a um certo circuito estabelecido – quase sempre, e compreensivelmente, pelas vias de agrupamentos, como já aventado. Percebe-se com mais intensidade, por exemplo, para além da necessidade real e palpável gerada pela escassez de locais (leia-se instituições) que equacionem a possibilidade de acesso real, prestígio, profissionalismo e que ainda permitam ao artista resguardar certa “isenção moral”, um questionamento, por assim dizer, de tons político-ideológicos norteando a atividade de alguns coletivos de artistas, apontando para uma certa “atitude”* de repúdio em relação à própria noção de instituição. Este dado ganha mais coerência quando analisado em conjunto com uma discussão que se não é de todo nova – a complexidade de relações envolvendo o binômio arte-instituição vem sendo debatida internacionalmente pelo menos desde meados dos anos 60 -, é agora investida de um novo e determinante componente: a constatação de que um certo corporativismo se instala e predomina, de modo amplo e contundente, nos principais redutos da cultura e das artes visuais (e me atenho aqui a comentar um contexto que é o que se configura hoje em São Paulo, acreditando ser, por extensão, emblemático do que pode ocorrer em outros pontos do país). Setores que tradicionalmente limitavam-se a uma relação mais distanciada, periférica mesmo, com o universo da cultura de modo geral, ultimamente parecem ter visto ali, por assim dizer, “novas possibilidades de atuação”.

Essa recente e complexa dinâmica parece ter desenhado uma reconfiguração de políticas culturais e levado a rearticulações de poder nos bastidores do cenário artístico; o que, por sua vez, se faz refletir – em graus diversos – nas necessidades que podem estar levando à proliferação de associações informais de artistas e à aparição de tantos novos espaços independentes. É certo que pode haver uma dose de especulação na construção desse raciocínio – e certamente há mais uma gama de fatores a serem considerados nesse processo que não poderiam ser agora discutidos propriamente -, mas o fato é que há uma efervescência como há muito não se via no meio das artes do Brasil, no sentido de se buscar outras vias para dar vazão à produção cultural e artística no país, além de incitar discussões que possam acenar com novas perspectivas ao contexto atual. E se a vitalidade e o frescor em princípio legítimos e salutares dessa movimentação em alguns casos ainda indique certa fragilidade ou precariedade de meios e posturas, atesta por outro lado para a necessidade de uma reflexão mais profunda e pontual acerca da gradual perda de referências no âmbito institucional da arte no país.

Guy Amado

* Essa “atitude” – que aqui associo mais a uma linha de atuação supostamente “contestatória” de alguns coletivos de artistas que aos “espaços alternativos” que eles possam gerenciar ou coordenar – segue entre aspas por freqüentemente se manifestar de modo tão intenso e contundente quanto disperso e contraditório, em termos de proposta real de atuação. Não raro parcamente apoiado em discursos de transgressão e subversão assimilados de maneira superficial e anacrônica (‘anti-instituição’, ‘anti-mercado’, ‘anti-arte’, etc, por vezes sugerindo releituras rasas de práticas situacionistas), o vigor – autêntico – dessas iniciativas corre o risco de se diluir numa retórica do vazio. É uma discussão, no entanto, que pede um aprofundamento maior, podendo talvez ser mais propriamente abordada e fundamentada em futuras edições da Número.

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